Escutai-O, o Filho amado!

II domingo da Quaresma, ano B
Mc 9,2-10
Reflexão sobre o Evangelho por Enzo Bianchi

 

Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e subiu só com eles
para um lugar retirado num alto monte e transfigurou-Se diante deles.
As suas vestes tornaram-se resplandecentes,
de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra
as poderia assim branquear.
Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.
Pedro tomou a palavra e disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados.
Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra e da nuvem fez-se ouvir uma voz:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
De repente, olhando em redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, sozinho com eles.
Ao descerem do monte, Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto,
enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
Eles guardaram a recomendação, mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.

O segundo domingo da Quaresma é tradicionalmente o domingo da Transfiguração, ou seja o polo oposto ao primeiro, dedicado às tentações de Jesus. Este ano lemos a história a partir do Evangelho de Marcos mas como já comentámos tantas vezes o mistério da Transfiguração do Senhor, aproveitamos para dizer qualquer coisa sobre algumas críticas que têm sido feitas à linguagem e ao estilo do Papa Francisco.  

Mas comecemos por contextualizar o acontecimento: um acontecimento histórico não um mito! No centro do Evangelho Jesus fez pela primeira vez à sua comunidade, o anúncio da paixão, morte e ressurreição já próximas, suscitando a incompreensão da parte de Pedro (cf. Mc 8,31-33), e disse ainda à multidão que seguir Jesus passa pela cruz (cf. Mc 8,31-37). O discípulo de Jesus não pode pensar em ser livre da cruz, não pode recusá-la como escândalo e vergonha porque se se envergonhar de Jesus crucifixo, então também o Filho do Homem se envergonhará dele na sua vinda gloriosa (cf. Mc 8,38). Vinda gloriosa que concluirá a história, mas da qual - anuncia o próprio Jesus - alguns poderão ver uma antecipação (cf. Mc 9,1).

Seis dias depois” destas palavras, portanto no sétimo dia, “Jesus toma consigo Pedro, Tiago e João”, os discípulos que lhe são mais próximos e íntimos (testemunhos da ressurreição da filha de Jairo: cf. Mc 5,37; testemunhas da agonia de Jesus, da sua des-figuração no orto do Getsemani: cf. Mc 14,33), “e condu-los ao alto de um monte ermo, sozinhos”. E eis o grande mistério: Mateus escreve que “o seu rosto resplandeceu como o Sol” (Mt 17,2), Lucas diz que “o aspeto do seu rosto modificou-se” (Lc 9,29). Marcos, por seu turno, é muito discreto. Diz-nos que Jesus “transfigurou-se (metemorphóte) diante deles”, por uma ação divina (expressa no passivo), e assim “As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia assim branquear”.

O que aconteceu é difícil de contar, quem o pode descrever adequadamente? Marcos, para que os leitores compreendam a excecionalidade do acontecimento, usa uma imagem eficaz, expressa de forma simples, em vernáculo, usando um estilo que nos pode surpreender. O Evangelista mais antigo fala um grego simples, não domina a língua a ponto de a tornar elegante como faz Lucas e, por isso, usa a comparação com o lavadeiro. Certamente os três evangelistas sinóticos, apesar das suas diferenças de estilo, não sabiam narrar a transfiguração de Jesus com a profundidade teológica dos padres da igreja grega quando leram o "branco resplandescente"  como a “energia incriada” presente no corpo de Jesus, o Filho de Deus. Todavia a mensagem de Marcos tem a mesma qualidade teológica dos outros dois e a teofania por ele apresentada não resulta mais pobre ou incompleta.

Destaco isto, pensando na forma de expressão do Papa Francisco, criticado e muitas vezes desprezado por se exprimir em vernáculo, para ser compreendido por todos, servindo-se de uma linguagem simples, longe dos termos de uma lição teológica. Atenção portanto, e “quem tem ouvidos para escutar, escute!” (Mc 4,9), como Jesus tantas vezes disse…

O branco é luz, é a cor do mundo celeste (cf. Dn 7,9), do céu aberto e nada sobre a terra se lhe assemelha. Também os anjos da ressurreição (cf. Mc 16,5 e par.; Jo 20,12) e os da ascensão ao céu, segundo a iconografia tradicional, se vestiram de branco. Uma luz extraordinária! Jesus aparece, portanto, transfigurado e do seu corpo emana luz, como emanava de Moisés (cf. Es 34,29-35), como emana do Filho do Homem na visão apocalítica de João (cf. Ap 1,12-16). Ao lado de Jesus “apareceram-lhes Moisés e Elias conversando com Jesus”: a Profecia e a Lei, das quais Jesus é interprete e cumprimento.

Diante de tal “visão”, Pedro tenta dizer qualquer coisa, balbucia, não sabe o que dizer senão que lhe apetecia ficar ali para sempre, parar aquele instante, torna-lo definitivo. Assim tudo seria cumprido sem a Paixão e sem a cruz… Mas este “congelar” da experiência não é possível e uma nuvem cobre-os a todos, enquanto uma voz proveniente dela proclama: “Este é o meu Filho muito amado: escutai-O!” (cf. Sal 2,7; Gen 22,2; Dt 18,15). Se no batismo a voz do Pai era ressoada apenas para Jesus (cf. Mc 1,11), aqui a revelação é também para os três discípulos. E o convite é o mesmo, decisivo para cada discípulo de Jesus, seja em que tempo for: é preciso escutá-lo, o Filho que é o Kýrios, o Senhor! Escutá-Lo, não aos medos pessoais, aos desejos pessoais, às imagens e projeções pessoais de Deus. Para ver e escutar Deus (“Shema‘…”: Dt 6,4) é preciso ver e escutar Jesus.

E logo a seguir nenhuma luz, nenhuma voz, nenhuma presença: apenas Jesus com os três discípulos, Jesus com eles como sempre tinha acontecido. Um homem, um companheiro que desce do monte para cumprir o seu caminho para Jerusalém, para a morte que espera cada justo, cada verdadeiro Filho de Deus.