A oração, uma relação

Le parole della spiritualità
de Enzo Bianchi

A oração leva o sujeito a descentrar-se do seu "eu" para viver sempre mais da vida de Cristo nele

Na tradição religiosa, a oração, nas suas formas e nos seus modos, aparece directamente ligada ao rosto de Deus que ela pretende atingir. E o Deus da revelação bíblica é o Deus vivo que não se atinge com o nosso raciocínio, mas através da liberdade amorosa dos seus actos, das suas intervenções que mostram que é Ele mesmo a interessar-se por nós. É, pois, verdade que, longe de ser o fruto da natural auto-trancendência do homem ou o sucesso do seu inato sentido religioso, a oração cristã, que contesta qualquer auto-suficiência antropocêntrica, aparece como resposta do homem à decisão gratuita e prioritária de Deus de entrar em relação com o homem. É Deus que, segundo todas a páginas da Bíblia, procura, interroga, chama o homem, que, por sua vez, é conduzido da escuta à fé e na fé reage dando graças (bençãos, louvor, etc...) e interrogando (invocações, súplicas, intercessões,...), isto é, através da oração sintetizada nos seus dois momentos fundamentais.

 A oração é portanto oratio fidei (Tiago 5,15), eloquência de fé, expressão da adesão pessoal ao Senhor. A revelação bíblica confirma, também, a dimensão da oração como procura de Deus feita pelo Homem: procura como espaço que o homem predispõe ao revelar-se, que se mantém livre e soberano, de Deus para si; procura como abertura do homem ao evento do encontro que tem em vista a comunhão; procura como afirmação da alteridade de Deus em relação ao homem, como sinal do facto de que o homem não pode possuir Deus, mesmo quando o reconheça; procura como elemento constitutivo da dialéctica do amor, da relação de diálogo central, na oração.  

 Se a oração cristã é resposta a Deus que nos falou primeiro, ela é também invocação e procura do Deus que se esconde, que se cala, que oculta a sua presença. A dialéctica amorosa presente no Cântico do Cânticos, o jogo do esconde e aparece, do desejo e da procura entre amante e amada pode aplicar-se também à oração. Os Salmos mostram-no: "Ó Deus, Tu és o meu Deus! Anseio por ti! A minha alma tem sede de ti; todo o meu ser anela por ti, como terra árida, exausta e sem água (...) lembro-me de ti no meu leito, penso em ti se fico acordado (...) a tua mão direita me sustenta" (Salmo 63).  E o diálogo amoroso presente no Cântico é no fundo a realidade a que a Escritura quer conduzir o Homem na sua relação com Deus. É talvez esta dimensão relacional o que melhor pode exprimir o proprium da oração cristã, oração que entra e vive dentro da aliança estabelecida por Deus com os homens. Feita esta premissa, podemos dizer que se a vida é adaptação ao ambiente, a oração que é a vida espiritual em acção, é adaptação ao nosso ambiente, vital e último, que é a realidade de Deus em que tudo e todos estão incluidos. Essencial, como disposição fundamental da oração cristã, é a aceitação e a confissão das nossas fraquezas. Exemplar é o comportamento do publicano da parábola evangélica (Lucas 18, 9-14) que reza, apresentando-se a Deus como na verdade é, sem mentiras, sem máscaras, sem hipocrisias, sem idealizações e aceitando como verdade aquilo que Deus pensa dele, o olhar que Deus lhe dirige.  Apenas quem é capaz de um comportamento realista, pobre e humilde, pode estar diante de Deus aceitando ser conhecido por Deus por aquilo que verdadeiramente é.

De resto aquilo que é mesmo importante é o conhecimneto que Deus tem de nós, enquanto nós nos conhecemos de forma imperfeita (cf. 1 Coríntios 13,12 e Gálatas 4,9). Ponto de partida para a oração é a confissão da nossa incapacidade de rezar em condições: "É assim que também o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis." (Romanos 8,26). Desta confissão se abre a vida de Deus em nós. A oração leva o sujeito a descentrar-se do seu "eu" para viver sempre mais da vida de Cristo nele, para viver guiado pelo Espírito, para viver como filho com o Pai. Este descentramento não tem nada a ver com o "fazer um vazio em si mesmo" que copia comportamentos espirituais de outras tradições culturais e religiosas. É um descentramento destinado ao agapê, ao amor. De facto, o objectivo da oração cristã, que a distingue de outras formas de meditação, técnicas de ascese ou de concentração difusas no Oriente, é a caridade, é o sair de si para encontrar a pessoa viva de Jesús Cristo, é o amar os homens "como Ele nos amou". Esta relação, que é reflexo da vida do Deus trinitário e que abraça tanto Deus como os outros homens, é a marca fundamental da oração cristã.  

extraído de:
ENZO BIANCHI, Le parole della spiritualità,
Rizzoli, 1999 pp.105-108